O desaparecimento do latim na liturgia

Banner do artigo

O ataque contra o latim é um ataque contra Roma e contra o catolicismo. Entenda como a língua úncia e universal da Sagrada Liturgia Romana foi perguida, e quase suprimida, da Liturgia Católica.

Padre Lucas Altmayer, 28/01/2025 16:00

O abandono do latim

Mesmo antes da publicação do Novus Ordo Missae (NOM), soprava na Igreja um vento de desordem e subversão sistemática, especialmente no que diz respeito ao latim. Esta subversão foi curiosamente realizada “em nome do Concílio". Analisemos a história desta subversão.

 

§-1 Latim e a Constituição sobre a liturgia.

O artigo 36 da Constituição sobre a liturgia do Concílio Vaticano II, Sacrossanctum Concilium, datada de 4 de dezembro de 1963, trata a questão do latim nos seus três primeiros parágrafos:

§1: “O uso da língua latina, salvo lei especial, será preservado nos ritos latinos”.

§2: “No entanto, seja na Missa, seja na administração dos sacramentos, seja em outras partes da liturgia, o uso da língua do país pode muitas vezes ser muito útil para o povo: podemos, portanto, conceder-lhe um lugar maior, especialmente nas leituras e monições, num certo número de orações e cantos, de acordo com as normas que se estabelecem sobre esta matéria nos capítulos seguintes, para cada caso".

§3º “Observadas estas normas, caberá à autoridade eclesiástica que tiver jurisdição sobre o território, mencionada no artigo 22, § 2º (mesmo, se for o caso, após deliberação com os bispos das regiões vizinhas da mesma língua), decidir se e como usar a língua do país, fazendo com que os seus atos sejam aprovados, ou seja, ratificados, pela Sé Apostólica”.

§ 4: “A tradução do texto latino para a língua do país, a ser utilizado na liturgia, deverá ser aprovada pela autoridade eclesiástica com jurisdição sobre o território, acima referida”.

 

É difícil marcar mais claramente a relação hierárquica e concreta que se estabelece entre o latim e as línguas vernáculas. O latim é a língua normal, a língua principal, a língua básica, e às línguas vernáculas é atribuído um lugar possivelmente maior do que aquele que ocupavam antes do Concílio. Todas as palavras nos três parágrafos dizem isso positivamente. Dizem-no também de forma negativa, porque é bastante óbvio que se o Concílio tivesse querido dar prioridade às línguas vernáculas, a construção do texto teria sido oposta. Teríamos lido algo assim: “o uso das línguas vernáculas será introduzido no rito latino...”, e as exceções ou reservas em benefício da língua latina teriam então sido elencadas.

Todas as outras passagens das Constituições onde o latim é questão, atribuem este primeiro lugar ao latim, nomeadamente os artigos 39, 54, 63, 101.

Vamos ler o artigo 54: “Uso da língua do país”: “Podemos dar o lugar adequado à língua do país nas missas celebradas com a participação do povo, especialmente para as leituras e a “oração comum”, e, dependendo das condições locais, também nas partes que pertencem às pessoas, nos termos do artigo 36 desta Constituição. Contudo, será tomado cuidado para que os fiéis possam recitar ou cantar juntos em latim também as partes do ordinário da Missa que lhes pertencem. Mas, se em algum lugar parecer apropriado um uso mais amplo da língua do país nas missas, observaremos o que está prescrito no artigo 40 desta Constituição. »

Então está bem claro. A reflexão do Concílio sobre a utilização do latim não é de forma alguma ambígua. O latim deve ser usado e, em momento algum a letra do Concílio Vaticano II pede a supressão do latim ou que a liturgia passe a ser celebrada unicamente em língua vernacular.

Mas o que vemos?

Aos poucos, o latim abandonou a missa, a tal ponto que foi o vernáculo que se tornou a língua básica e que, se as coisas continuassem e se a “Tradição” não tivesse reagido, o latim nem sequer sobreviveria na liturgia. Em poucos anos, a Constituição Conciliar seria destruída.

O Concílio, ao manter o latim como língua básica da liturgia, demonstrou claramente o seu desejo de evitar qualquer ruptura com a Tradição. Ao vernáculo foram oferecidas novas oportunidades, mas sem o risco de aventuras excessivas.

Este é o testemunho formal do Cardeal Stickler. (Cf: testemunho de um perito no Concílio. p.38). É muito importante citar o Cardeal Stickler pois ele esteve no centro das discussões sobre a língua latina e a língua vernacular durante o Concílio Vaticano II. Foi alguém que viveu estes momentos. 

 

§-2: Os pensamentos do Cardeal Afonso Maria Stickler (+2007)

 

Latim, como língua litúrgica.

O Cardeal expressa o seu espanto sobre este assunto – do latim como língua litúrgica. Ele não entende como, depois do que os Padres Conciliares solicitaram sobre este ponto, chegamos à supressão geral e ao triunfo das línguas vernáculas.

Esta passagem sobre o latim, no livro que acabamos de citar do Cardeal Stickler, é muito interessante e deve ser citado na íntegra. Ele dá um testemunho histórico, depois o ensinamento magisterial e finalmente os argumentos teológicos. O Cardeal Stcikler esteve realmente – durante o Concílio – no centro do problema, já que ele era o encarregado do relatório sobre a língua latina. É uma das maiores autoridades no assunto.

 

a- Seu testemunho pessoal:

“Nesta fase, é oportuno mencionar uma disposição do Concílio que não só foi mal compreendida, mas, ainda mais, completamente repudiada: a linguagem do culto. Permitir-me-ei aqui, mais uma vez, apoiar o meu argumento com uma memória pessoal. Como especialista da Comissão de Seminários, fui encarregado do relatório sobre a língua latina. Foi claro e breve e, após cuidadosa discussão, redigido de forma a corresponder aos desejos de todos os membros antes de ser submetido à aula conciliar. Foi então que, sem ninguém esperar, o Papa João XXIII assinou com toda solenidade, no altar de São Pedro, a carta apostólica Veterum Sapientia, que, na opinião da Comissão, fez a declaração conciliar sobre o latim na Igreja supérfluo: esta carta apresentava não só a relação entre a língua latina e a liturgia, mas também todas as outras funções desta língua na vida da Igreja. Quando, durante vários dias, a questão da língua de culto foi discutida na aula conciliar, acompanhei com grande atenção todo este debate, bem como a discussão, até à votação final, das diferentes formulações incluídas na Constituição sobre o Sagrada Liturgia. Lembro-me muito bem que, seguindo algumas propostas radicais, um bispo siciliano se levantou e convocou os Padres a procederem, nesta questão, com prudência e inteligência porque, caso contrário, corria-se o risco de a Missa ser rezada na íntegra em vernáculo, o que fez com que toda a aula conciliar caísse na gargalhada. E é por isso que nunca compreendi como, nas suas Memórias publicadas em 1983, Monsenhor Bugnini, a respeito da transição radical e completa do latim obrigatório para o vernáculo como língua religiosa exclusiva, poderia ter escrito que o Concílio tinha praticamente dito que o vernáculo, durante toda a Missa, é uma necessidade pastoral (op. cit. pp. 108-121 na edição original italiana). “Ao contrário disso, posso testemunhar que as formulações da Constituição Conciliar sobre este ponto, tanto na sua parte geral (art. 36) como nas disposições particulares relativas ao Sacrifício da Missa (art. 54) foram aprovadas quase por unanimidade nas discussões dos Padres conciliares e especialmente durante a votação final: 2.152 sim e 4 não”.

 

b- Depois o ensinamento magisterial sobre o latim:

“Durante a pesquisa que fiz para preparar o relatório sobre a tradição em que se basearia este decreto conciliar sobre a língua latina, notei que toda a Tradição foi absolutamente unânime neste ponto, até o Papa João XXIII: ela sempre falou manifestar-se claramente contra todas as tentativas anteriores destinadas a inverter esta ordem de coisas. Penso aqui em particular na decisão do Concílio de Trento, sancionada com um anátema, contra Lutero e o Protestantismo, de Pio VI contra o Bispo Ricci e o Sínodo de Pistoia, de Pio XII, que sobre a língua litúrgica da Igreja pronunciou um claro “non vulgaris”.

O Concílio de Trento ensina bem no seu cânon 9 na sua 22ª sessão: “Se alguém disser... que a Missa só deve ser celebrada em vernáculo... seja anátema”. E no seu capítulo doutrinal – no capítulo VIII da mesma sessão – lemos: “Embora a Missa contenha um rico ensinamento para o povo fiel, não pareceu bem aos Padres que fosse celebrada indiscriminadamente na linguagem vulgar”.

Contudo, foram dadas ordens aos pastores de almas para darem regularmente instruções para explicar o significado das belas peças do Missal Romano.

Quanto ao Papa Pio VI invocado pelo Cardeal Stickler, podemos, de facto, citar, entre outras, a proposição 66: “A proposição que afirma ser contrária à prática apostólica e aos conselhos de Deus, não preparar o povo mais facilmente formas de unir a própria voz à voz de toda a Igreja, se for entendida no sentido de que é necessário introduzir o uso da linguagem vulgar nas orações litúrgicas, é falso, imprudente, perturba a ordem presente para a celebração dos mistérios , produz facilmente muitos males.”

Esta é a verdadeira Tradição Católica que Monsenhor Bunigni e a sua equipe deveriam defender e respeitar, e que não defenderam, nem respeitaram, nem mesmo o Papa Paulo VI. Na verdade, o Cardeal prova bem o seu julgamento: “O Ordo Missae – aquele resultante do Concílio Vaticano II – é radicalmente novo”, quanto à linguagem litúrgica, não respeitando a Tradição Católica.

 

c- Finalmente, os argumentos desenvolvidos pelo Cardeal para manter o latim como língua litúrgica.

“Devemos ver claramente que a razão não é apenas de natureza religiosa, mesmo que este aspecto seja sempre apresentado. É também uma questão de reverência, de temor respeitoso: assim como o véu cobre os vasos sagrados, o latim serve de proteção contra a profanação - à maneira da iconóstase das Igrejas Orientais atrás da qual se realiza a anáfora - e contra o perigo de popularizar, na linguagem vernácula, toda a ação ligada ao mistério, o que acontece com frequência hoje em dia. Mas isto também se deve à precisão do latim, que serve uma doutrina dogmaticamente clara como nenhuma outra língua; o latim serve para evitar o perigo de obscurecer ou distorcer a verdade nas traduções, o que poderia prejudicar gravemente também o elemento pastoral, que é tão importante; e à unidade que assim se manifesta e se fortalece em toda a Igreja”.

“Ainda do ponto de vista pastoral, o abandono do latim como língua litúrgica, contra a vontade expressa do Concílio, gera uma segunda fonte de erros, ainda mais graves: quero falar da função de língua universal que ele assume, que une toda a Igreja, precisamente, no culto público, sem denegrir nenhuma língua vernácula viva. E precisamente no nosso tempo, quando o conceito de Igreja que vemos desenvolver-se coloca a ênfase em todo o povo de Deus considerado como o Corpo místico de Cristo, aspecto sempre sublinhado na reforma, acontece que, pela introdução do exclusivo uso de línguas vernáculas, e mesmo de dialetos, a unidade da Igreja universal é substituída por uma diversidade de inúmeras capelas populares, até ao nível das comunidades aldeãs e das igrejas paroquiais, separadas umas das outras por uma diferença real de tensão natural que , entre eles, é e só pode ser intransponível. Do ponto de vista pastoral, como pode então um católico encontrar a sua Missa em todo o mundo, e como podemos abolir as diferenças entre raças e povos num culto comum, graças a uma língua litúrgica sagrada comum, assim como o fez expressamente o Concílio? Até que ponto cada sacerdote tem a possibilidade pastoral de exercer o sumo sacerdócio da Santa Missa em qualquer lugar, especialmente neste mundo onde os sacerdotes se tornaram tão raros? ".

O Concílio não decretou a eliminação total do latim. Ele decreta exatamente o contrário: “o uso da língua latina, salvo casos especiais, será observado nos ritos latinos” (art. 36).

Se houve o Concílio, houve também o rescaldo do Concílio; houve esta mentalidade pós-conciliar, denunciada pelo próprio Paulo VI - que falou da autodestruição da Igreja - da fumaça de Satanás na Igreja - e por Bento XVI - recordem a sua conferência de 22 de Dezembro, 2005 – que consiste em levar a subversão para todos os lados. Os inovadores queriam, e conseguiram, a substituição completa do latim pelo vernáculo, não só e não tanto porque as cerimónias religiosas seriam assim mais inteligíveis, mas porque se trata de afirmar clara e visivelmente que acabamos com o passado e a tradição, que avançamos com os tempos e a modernidade e avançar em direção ao futuro.

Este ataque ao latim, como língua sagrada, como língua de culto, é uma característica da heresia antilitúrgica tão bem descrita por Dom Guéranger em suas “Instituições Litúrgicas (T I p 419).

 

§-3 Dom Guéranger e latim

      Vamos cirtar agora Dom Prósper Guéranger, abade beneditino, grande estudioso da liturgia romana. Ele falou muito sobre os malefícios da perseguição ao latim. Isso é muito importante. Esta é a oitava proposição sobre a Reforma protestante, no seu livro “A heresia litúrgica”:

         “8- Tendo a reforma litúrgica (protestante) como um dos seus principais objetivos a abolição dos atos e fórmulas místicas, segue-se necessariamente que os seus autores (os protestantes) tiveram que exigir o uso da linguagem vulgar no serviço divino. Este é também um dos pontos mais importantes aos olhos dos sectários. A adoração não é algo secreto, dizem; o povo deve ouvir o que canta. O ódio à língua latina é inato nos corações de todos os inimigos de Roma; eles vêem nele o vínculo dos católicos com o universo, o arsenal da ortodoxia contra todas as sutilezas do espírito sectário, a arma mais poderosa do Papado. O espírito de revolta que os leva a confiar a oração universal ao idioma de cada povo, de cada província, de cada século, produziu, além disso, os seus frutos, e os Reformados conseguem todos os dias perceber que os povos católicos, apesar da sua tradição latina, orações, têm melhor gosto e cumprem os deveres do culto com mais zelo do que os povos protestantes. A cada hora do dia, o serviço divino acontece nas Igrejas Católicas; os fiéis que assistem deixam a língua materna na porta; fora das horas de pregação, ouvem apenas acentos misteriosos que se deixam ressoar até no momento mais solene, no Cânone da Missa; e, no entanto, este mistério os encanta tanto que eles não invejam o destino do protestante, cujo ouvido só ouve sons cujo significado percebe. Enquanto o Templo Reformado reúne, com grande dificuldade, uma vez por semana, os cristãos puristas, a Igreja Papista vê constantemente os seus numerosos altares assediados pelos seus filhos religiosos, que se afastam do seu trabalho para virem ouvir estas palavras misteriosas que devem ser de Deus, porque nutrem a fé e encantam as dores. Sejamos realistas: é um golpe de mestre do protestantismo ter declarado guerra à língua sagrada; se conseguisse destruí-lo, seu triunfo estaria bem avançado. Oferecida ao olhar profano, como uma virgem desonrada, a Liturgia, a partir deste momento, perdeu o seu caráter sagrado, e o povo logo descobrirá que não vale a pena perturbar o seu trabalho ou os seus prazeres para ir ouvir ( a liturgia) como as pessoas falam em praça pública. Tirem da Igreja Francesa as suas declamações radicais e as suas diatribes contra a alegada venalidade do clero, e vejam se o povo escutará por muito tempo o chamado Primaz dos Gauleses gritar: “O Senhor está convosco”; e outros respondem a ele; “E com o seu espírito.” Trataremos em outro lugar, de maneira especial, da linguagem litúrgica”.

          Resumimos o pensamento de Dom Guéranger:

-os inimigos de Roma odeiam o latim;

-O latim está no princípio da unidade dos católicos;

-O latim é o arsenal da ortodoxia;

 

§-4 Dom Lefebvre e o latim litúrgico:

Dom Lefebvre no seu “Itinerário Espiritual” não tem uma palavra suficientemente forte para castigar esta recusa do romanismo, da língua latina no culto divino. Vamos ver agora uma das notas que este grande Bispo escreveu. Seu título é:  “A escolha providencial de Roma, como Sede de Pedro e os benefícios desta escolha para o crescimento do Corpo Místico da NSJC”. Disse Dom Lefevbre:

“Creio que devo acrescentar algumas linhas para chamar a atenção dos nossos sacerdotes e dos nossos seminaristas para o fato incontestável das influências romanas na nossa espiritualidade, na nossa liturgia e até na nossa teologia. Não podemos negar que este é um facto providencial: Deus, que guia todas as coisas, na sua infinita sabedoria preparou Roma para se tornar a sede de Pedro e o centro da influência do Evangelho.

Dom Guéranger na sua “História de Santa Cecília” mostra o grande papel que os membros das grandes famílias romanas desempenharam na fundação da Igreja, dando os seus bens e o seu sangue pela vitória e pelo reinado de Jesus Cristo. A nossa liturgia romana é uma testemunha fiel disto.

Romanidade não é uma palavra vazia. A língua latina é um exemplo importante. Ela levou a expressão da fé e do culto católico até os confins do mundo. E os povos convertidos orgulhavam-se de cantar a sua fé nesta língua, verdadeiro símbolo da unidade da fé católica. Os cismas e as heresias muitas vezes começaram com uma ruptura com a romanidade, uma ruptura com a liturgia romana, com o latim, com a teologia dos Padres e dos teólogos latinos e romanos. É esta força da fé católica enraizada na Romanidade que a Maçonaria quis fazer desaparecer, ocupando os Estados Papais e encerrando a Roma Católica na Cidade do Vaticano. Esta ocupação de Roma pelos maçons permitiu a infiltração do modernismo na Igreja e a destruição da Roma católica pelos clérigos e papas modernistas que se apressam a destruir qualquer vestígio de “Romanidade”: a língua latina, a liturgia romana.

Examinemos como passam por Roma os caminhos da Providência e da Sabedoria Divina e concluiremos que não se pode ser católico sem ser romano. Deus queria que o cristianismo, por assim dizer moldado nos moldes romanos, recebesse vigor e expansão excepcionais. Tudo é graça no plano divino e Nosso divino Salvador dispôs tudo, como se diz dos romanos, “cum consillio et patientia” ou “suaviter et fortiter”!

Podemos portanto concluir, a partir do pensamento de Dom Lefebvre, que, no domínio litúrgico, é o abandono do latim que resume a derrota de Roma e o triunfo da subversão modernista.

 

§-5 Razões para abandono.

Mas por que esse abandono?

Durante o Concílio, toda a imprensa fez campanha pelo vernáculo. Onde encontraríamos uma população que resiste à imprensa unânime, sem falar no rádio e na televisão? Os argumentos apresentados foram os que convenceram as multidões. As pessoas diziam: isto é um progresso, temos que sair da Idade Média. Quem gostaria de ser contra o progresso?

Novidade, mudança, moda sempre seduzem. Quem gostaria de fazer parte dos retrógrados, dos reacionários, dos tradicionalistas? Obviamente era melhor ser a favor da reforma, da revolução, do futuro, dos amanhãs brilhantes.

Dissemos também: é para que a sua religião seja inteligível, para que você a entenda e para que possa participar melhor das cerimônias de culto. Como podemos recusar este apelo lisonjeiro à inteligência? Se somos adultos, é evidente que devemos conhecer Deus e falar com Ele como iguais, como pessoas livres e inteligentes, capazes de dialogar ao mesmo nível.

Ainda se dizia: o latim só é conhecido por uma minoria privilegiada; Agora a Igreja é a Igreja dos pobres, a sua oração é por todos e não por aqueles que tiveram a oportunidade de prosseguir o ensino superior. O argumento é irresistível... Foi utilizado pelo próprio Papa Paulo VI.

Vejamos o pensamento dos Papas do Concílio sobre a supressão do latim.

 

§-6 João XXIII e latim.

          João XXIII explica, num famoso texto, Veterum Sapientiae, assinado no altar de Bernini com grande solenidade em 22 de fevereiro de 1962, a importância do latim para a Igreja.

João XXIII é o papa do Concílio Vaticano II. Defendeu o uso do latim, não só para documentos oficiais do Vaticano, e não só para estudos clericais, mas também para linguagem litúrgica. Não de passagem, num discurso improvisado, mas numa constituição solene que ele fez questão de promulgar pessoalmente em São Pedro, na presença de quarenta cardeais e não sei quantos bispos, padres e notáveis ​​romanos.

 

O que aconteceu é que séculos de tradição, o pensamento de todos os papas e de João XXIII, o papa do Concílio e, finalmente, o próprio Concílio, o Vaticano II, cuja Constituição litúrgica prescreve expressamente que "o uso da língua latina, exceto por lei especial, será observada nos ritos latinos" (art. 36), aconteceu que tudo isso desmoronou diante da subversão modernista implantada no interior da Igreja ao invocar até mesmo a autoridade do Concílio, escondendo-se atrás "do espírito do Concílio ” e por trás do pensamento do próprio Papa Paulo VI, que sucedeu ao Papa João XXIII. O que pensava Paulo VI

 

§-8 Paulo VI e latim

É certo que o comportamento de Paulo VI desconcerta a muitos. Num artigo em Les Etudes (julho-agosto de 1967, p. 81), o Padre Rouquettes relata as palavras de um amigo romano, real ou imaginário, segundo o qual "se as palavras de Paulo VI são muitas vezes advertências contra os excessos da reforma, as suas decisões para a maior parte vão na direção desta reforma” (trata-se da reforma da Igreja e não apenas da reforma litúrgica). É ele o justo intérprete da lei e, em particular, do documento Sacro Sanctum Concilium.

 

O que devemos pensar?      

Em primeiro lugar, o que deve ser dito é que é o Papa quem reforma. Não caminha na direção de uma reforma que lhe seria proposta ou imposta. Ele reformou (veja a missa que ele mesmo celebrou em 5 de março de 1965, em Roma). E assim a verdadeira questão que se coloca não é se Paulo VI vai ou não na direção da reforma desejada pelos inovadores, mas qual é o seu pensamento pessoal e por qual caminho pretende conduzir a Igreja.

Esta questão surge em particular no que diz respeito à extensão do vernáculo à toda a missa. Há uma reforma que está de acordo com o desejo dos inovadores, mas que é contrária ao espírito e à letra da Constituição sobre a liturgia (cf. a nossa demonstração acima). Ora, é um facto que Paulo VI não o impediu. Ele pelo menos o aprovou tacitamente, ou seja, ele, na sua soberania pontifícia, aboliu parcialmente um texto conciliar. Seu direito não está em dúvida. Mas o paradoxo da situação é que, na sua atitude, não é o pleno exercício dos seus direitos que vemos; pelo contrário, vemos o triunfo dos reformadores que teriam sido suficientemente poderosos para submeter a sua vontade à sua própria vontade.

O Papa cedeu? Ou ele realizou uma reforma que estava pessoalmente determinado a realizar?

Em primeiro lugar, no que me diz respeito, estou convencido de que a vontade do Papa não se curvou a nenhuma outra vontade. Esta é apenas uma convicção pessoal, mas é plena e completa. O Papa sabe o que quer e certamente quis o que fez.

Para qual finalidade? É sobre isso que podemos nos perguntar. Talvez para que o povo compreenda melhor a fé e a liturgia. Pelo menos foi o que expressou em duas ocasiões: 7 de março de 1965 e 26 de novembro de 1969.

Aqui estão os textos:

No dia 7 de março de 1965, declarou aos fiéis reunidos na Praça de São Pedro:

“É um sacrifício que a Igreja realiza ao renunciar ao latim, língua sagrada, bela, expressiva e elegante. Sacrificou séculos de tradição e unidade de linguagem por uma aspiração cada vez maior à universalidade.”

Este “sacrifício”, na mente de Paulo VI, parece definitivo.

Ele explicou isso novamente, em 26 de novembro de 1969, ao apresentar o novo rito da missa: “Já não é o latim”, disse ele, “mas a língua atual, que será a língua principal da missa. Para quem conhece a beleza, o poder do latim, a sua capacidade de expressar coisas sagradas, será certamente um grande sacrifício vê-lo substituído pela língua comum. Perderemos a linguagem dos séculos cristãos, tornar-nos-emos como intrusos e profanos no domínio literário da expressão sagrada. Perdemos assim em grande parte esta admirável e incomparável riqueza artística e espiritual que é o canto gregoriano. É claro que temos razão em sentir arrependimento e quase consternação..."

As palavras são tão poderosas – quando as relemos – que não podemos deixar de perguntar: mas então porquê?

“A resposta parece banal e prosaica”, disse Paulo VI, “mas é boa, porque humana e apostólica. A compreensão da oração é mais preciosa do que as velhas roupas de seda com as quais ela se adornou regiamente. Mais preciosa é a participação das pessoas, destas pessoas de hoje que querem que se fale com clareza, de uma forma inteligível que possam traduzir na sua linguagem profana. Se a nobre língua latina nos isolasse das crianças, dos jovens, do mundo do trabalho e dos negócios, se fosse uma tela opaca em vez de um cristal transparente, faríamos um bom cálculo, nós, pescadores de almas, preservando a sua exclusividade sem a linguagem da oração e da religião? »

É portanto o argumento da inteligibilidade (fonte de participação) que Paulo VI mantém. Porém, observemos dois pontos:

Em primeiro lugar, com o seu modo sempre equilibrado, Paulo VI declara, por um lado, que a língua atual substituirá doravante o latim na missa e, por outro lado, que o latim não terá mais “exclusividade” na oração e na religião. Não temos certeza sobre a respectiva participação das duas línguas, embora a vontade papal esteja fora de dúvida. É a linguagem cotidiana que ele deseja.

Em segundo lugar, é nos discursos que o Papa dá o seu slogan. Mas discursos não são decisões. O papa indica uma preferência pessoal, mas não revoga, como tem o direito de fazer, a Constituição Conciliar sobre a liturgia. Só esta continua a ser a lei e é necessariamente a lei que tem precedência. 

Contudo, a lei conciliar é pura e simplesmente desprezada. Isto é anarquia… praticada nos mais altos níveis.

 

§-10 Jean Madiran comentou este discurso nestes termos:

            Ouçamos agora o parecer, muito pertinente, de um grande jornalista francês, muito próximo de Dom Lefebvre, Jean Madrian, sobre as declarações de Paulo VI:

“Tratam-se de “declarações objetiva e manifestamente contrárias à lei em vigor, não revogadas, como acabamos de recordar; também contrário ao número 116 da Constituição Litúrgica, que ainda não citamos e ao qual raramente nos referimos a respeito do latim; o número 116 que afirma: “A Igreja reconhece no canto gregoriano o canto próprio da liturgia romana; é portanto ele quem, nas ações litúrgicas, sendo todas as coisas iguais, deve ocupar o primeiro lugar”.

Sem latim, não há mais gregoriano.

Se o gregoriano é o canto específico da liturgia romana, é porque o latim é necessariamente a sua língua específica. Se o gregoriano deve ocupar o primeiro lugar nas ações litúrgicas, é portanto necessariamente que o latim deve ocupar o primeiro lugar.

O papa tem, sem dúvida, o poder de revogar a lei conciliar; mas um simples discurso, mesmo do Papa, não tem em si esse poder. Além disso, Paulo VI declara continuamente que o Concílio em geral e a Constituição litúrgica em particular devem ser sempre considerados lei da Igreja...

Assim, quando Paulo VI declarou no seu discurso de 26 de novembro de 1969: “Já não é o latim, mas a língua atual que será a língua principal da missa”, quando especifica inequivocamente que doravante “o latim será substituído pela língua corrente ", quando acrescenta: "Estamos a perder a linguagem dos séculos cristãos, estamos a tornar-nos como intrusos e profanos no domínio literário da expressão sagrada", está assim a afirmar a sua opinião privada, a sua tendência pessoal, a sua preferência particular, pela qual ele também dá imediatamente a razão: espera uma maior “compreensão”, pensa que o latim corre o risco de “nos separar das crianças, dos jovens, do mundo do trabalho e dos negócios”. É uma opinião. É apenas uma opinião. Nada exige que o cumpramos. Nada nos impede de criticá-lo. Esta opinião não é de modo algum proposta à nossa obediência por um ato do Magistério. É uma confiança sobre um estado de espírito. É uma vontade individual: o desejo declarado de “substituir” o latim pelo “vernacular”. É um impulso, é um encorajamento dado a todo um partido da Igreja, o mais poderoso, o mais devastador: aquele que quer transformar-nos em intrusos e profanos no domínio da expressão religiosa. Mas, finalmente, é muito claro que este desejo pessoal de substituir o latim pelo “vernacular” na liturgia é contrário às leis da Igreja em geral e à lei do Vaticano II em particular. Tomamos nota desta violação das leis, sem desrespeito, sem prazer, mas sem fraqueza” (Itinerários n°146).

 

Encontramos assim uma nova característica do período que precedeu em alguns anos a introdução na Igreja do Novus Ordo Missae, uma nova característica que pode ser formulada assim: é o incentivo ao desprezo sistemático pela legislação existente, mesmo recente, e o estabelecimento de facto de uma espécie de vazio de legalidade cada vez mais extenso, deixando a porta aberta a qualquer abuso de poder, a qualquer subversão.

 

Nós somos contra...

Este sistema – da vacância da lei – vemos claramente no que diz respeito à introdução da língua vernácula na Igreja, em óbvio desrespeito pela lei mais recente do Concílio Vaticano.

 

§-11 A importância do latim.

Esta é uma questão de extrema importância por si só e porque rege muitas outras. Não se trata de gostar da missa em latim. É sobre se está certo e se é melhor.

 

A- A Missa em Latim garante a unidade do povo cristão. É por isso que estas são as grandes orações comuns para as quais a observação do latim (ou grego) parece ser uma prioridade: o Kyrie, o Gloria, o Credo, o Sanctus, o Pater, o Agnus Dei. Partes devem ser conhecidas por todos os católicos para que, em toda a superfície da terra, possam reconhecer-se e sentir-se em comunhão na Missa... especialmente em grandes reuniões.

Todos os fiéis têm direito ao latim em todas as missas e devem ter  acesso a esse latim, de acordo com a Constituição Litúrgica.

A solução certa, e só existe uma, é o respeito pela Constituição Conciliar, ou seja, dar às línguas vernáculas apenas o lugar apropriado e dar ao latim o seu lugar principal.

A unidade católica é abalada pela supressão da linguagem comum que é ao mesmo tempo o seu símbolo, expressão e apoio mais firme.

Costuma-se dizer que, nas grandes cerimonias internacionais, em Roma, nas peregrinações, nos congressos... o latim sobreviveria. Mas como sobreviveria, ou para que serviria, se ninguém mais soubesse disso?

Aqueles que em Roma, em Lourdes... ainda hoje cantam juntos o Credo, cantam-no porque o sabem; Eles obviamente não cantariam mais se não soubessem mais. E como o saberiam se já não a aprendessem no catecismo e se já não a cantassem nas paróquias e nas cerimónias nacionais?

Esta ignorância passaria naturalmente dos leigos para o clero. E se os sacerdotes já não rezam a missa em latim, se já não recitam o breviário em latim, já não saberão latim e se recusarão a aprender. Como ainda haveria necessidade de uma língua internacional em Roma, esta língua beneficiará o inglês e o alemão, fortalecendo assim o protestantismo a sua preeminência no diálogo ecuménico.

Não tenhamos ilusões: o ataque contra o latim é um ataque contra Roma e contra o catolicismo. Se o latim tiver de desaparecer das nossas igrejas, se deixar de ser cantado ali, se deixar de ser ouvido ali, a liturgia católica e a doutrina católica não resistirão à pressão do mundo moderno.

 

B- A nossa civilização está sob ataque e devemos redescobrir as nossas fontes, as nossas origens, a nossa tradição e a nossa história. Para enfrentar o mundo exterior, devemos primeiro permanecer nós mesmos, ser nós mesmos. Devemos isso como ocidentais e ao mesmo tempo como católicos. O problema do latim, que é o da nossa religião porque é romano, é também o da nossa civilização. Querer nos desligar disso seria um verdadeiro suicídio.

Seria difícil obter dos católicos o respeito pela Constituição conciliar no que diz respeito ao latim?

Seria ainda menos difícil porque sempre foi assim. Por que, de repente, seria difícil fazer o que sempre foi feito sem o menor problema ao longo dos séculos e até anos recentes? 

Se alguém contestar que os fiéis adoptaram o vernáculo e que já não querem o latim, responderei que isso não é verdade. A recusa geral do latim não corresponde de forma alguma ao seu pensamento que é, a este respeito, violado por todos os métodos clássicos de violação coletiva. Se lhes forem explicadas as razões profundas para manter o latim onde deve ser mantido, eles as compreenderão imediatamente e se juntarão a elas com alegria.

Hoje, quando os jovens, em particular, são tão sensíveis a tudo o que pode uni-los para além das rivalidades nacionais, como não sentiriam o vínculo de unidade e de solidariedade que constitui a mesma oração dita na mesma língua em todos os pontos do globo. Deixe-os perceber que reconhecerão estas orações em todas as igrejas cada vez que viajarem, deixe-os finalmente perceber que poderão dizê-las juntos quando se encontrarem em qualquer lugar para qualquer reunião... isto sempre trará o seu acordo sobre o lugar que o latim deve ocupar na sua religião.

É terrível pensar que estas verdades elementares que sempre foram aceitas como evidentes na Igreja, desde o topo da hierarquia até ao menor dos fiéis, possam hoje ser minadas por uma “gangue de revolucionários" cujo único objetivo é a destruição do catolicismo, destruição a que infelizmente conduzem tantas mentes honestas para cooperar, apresentando isso como uma renovação.

 

C- Por fim, em última instância e sobretudo, o latim é essencial porque está ligado a todo o resto e porque nos permite ver claramente o processo de desintegração da liturgia.

Ao eliminar o latim, de fato, afirmamos claramente a ruptura com todo o passado e abrimos caminho a todas as inovações. Só isso é um escudo contra a extravagância. Uma vez destruída a muralha, tudo se torna possível, permitido e recomendável. Porque séculos e séculos de uso o tornaram sagrado, basta aboli-lo para estabelecer a “dessacralização” em todas as áreas. O que é um objetivo altamente declarado. Com o sagrado, é também o mistério que desaparece.

 Mas trata-se precisamente de fazer desaparecer o mistério. O Cristianismo deve ser claro, inteligível, compreensível, funcional, racional, racionalista. A fé deve tornar-se razão. Vamos varrer os obstáculos. O latim é um deles. Isto é o que Lutero queria.

 

 

Texto baseado na obra e nas aulas do Padre Paul Aulagnier IBP (in memoriam). É da obra "La Tradition sans peur" que este site toma seu nome. Este texto é praticamente uma tradução dos textos do Padre Aulagnier. Poquissímas coisas foram alteradas.